Foi um ano.
Doze meses dos quais lembrarei e contarei pra meus filhos e netos os chamando sempre de ‘o melhor ano da minha vida’. Doze meses de aprendizado. Doze meses de 5 anos de experiência vividas.
Doze meses durante os quais vivi várias etapas, várias vidas.
Primeira. A semana do albergue.
No início, na primeira semana no albergue, com a incerteza e a insegurança Tudo o que eu tinha ficava trancado a cadeado em uma mala de 32 quilos em um quarto compartilhado com mais 5 pessoas. Conhecendo gente diferente, culturas diferentes, 5 continentes em uma mesa de plástico, trocando histórias e risadas em todos os idiomas. Longe de casa, a saudade da família apertava. Aliás, estava começando a ter contato com um dos maiores aprendizados que tive: o significado de casa. Uma agonia imensa era companheira constante no peito, sofrendo com a falta daquilo que até então me era tão natural e constante que eu não percebia sequer sua existência.
Segunda. A semana da burocracia.
Quando já estava na residência. Sendo apresentado à não muito agradável burocracia francesa. Acompanhado por Didier Leonard, professor da nossa universidade, fazendo os infindáveis procedimentos pra se inscrever na faculdade, conseguir o quarto na residência universitária, abrir a conta no banco. Tropeçando na língua francesa, assinando quilos de papéis sem ter a menor idéia do que significavam.
Terceira. A estabilidade das aulas.
Depois um pouco de estabilidade. A agonia já não existia mais. Procurando uma rotina. Tentando construir um lugar que pudéssemos chamar de casa. Conhecendo os vizinhos estrangeiros, cada um com sua realidade e cultura e algo pra ouvir e dizer. Misha, Alma, Terê, Anette, Woyten, Benoît, Cindy, Wajdi, Hamza, Momô... Procurando o congelado mais barato no Carrefour ou no Lidl, descobrindo os artigos domésticos baratos na loja da IKEA, se acostumando com as aulas e seus horários malucos e variáveis, procurando um frigobar barato nas lojas de produtos usados. Esperando o frio, que chegou logo. Começando a pensar em viagens, ainda sem saber direito como se planejar.
Fomos pra Genebra. Primeira viagem dos brasileiros, e (quase) todos juntos. Eu, Neil, Thales, Thamise, Lucas, Carol, Pedro e Maria Fernanda. Faltaram só os paulistas Rafael, Marcelo e Bruno. Andando o dia inteiro pra conhecer a cidade e começando a entender como funciona a vida de um viajante curioso sem dinheiro.
Quarta. O inverno.
E chegou o inverno. Veio a neve, pra irritação do Thales e felicidade de praticamente todos os outros. Dentro de casa o dia inteiro, todos juntos se abrigando do frio, todos empilhados dentro do quarto de um só jogando poker ou vendo filmes. Semana após semana, 24 horas por dia de convivência, conhecíamos as características, diferenças e afinidades.
Às proximidades do feriado de Natal eu e o Thales, únicos restante em Lyon, devorávamos os episódios da série Lost enquanto a neve caía, silenciosa, sem parar do outro lado da janela. Dentre os que viajavam Lucas e seus pais, que vieram de visita. Encontrei-os em Milão, passando a noite de ano novo com eles em uma praça da cidade rodeados por bombas estourando no meio da multidão. Todos juntos, tentando se abrigar do frio.
Quinta. A transição e as visitas.
Todos de volta a Lyon, em janeiro, o inverno continuava no auge. Viajei sozinho à Alemanha, passando por Berlim, Dusseldorf, Colônia e Munique. As matérias já estavam quase todas terminadas, exceto pelas aulas noturnas semanais de francês. Procurávamos decidir nosso destino para o próximo semestre: mais matérias ou estágio?
Nesse meio tempo de indecisão o Gabriel, amigo do Thales; a Laianne, namorada do Neil e a Thais, namorada do Lucas vieram visitá-los. Viajaram um bocado, ficaram em Lyon um outro tanto. Fizemos ski e snowboard nos Alpes, fomos à Disney.
Sexta. O estágio.
No fim das contas Lucas, Thales, Thamise, Bruno e eu conseguimos estágio na École Centrale de Lyon, cada um em um laboratório diferente, mas todos nós compartilhando a jornada matinal de 1 hora até chegar ao afastado campus da École, que fica em Ecully, cidade da grande Lyon.
Almoçávamos todo dia juntos os 5, pontualmente às 11:30, no Restaurante Universitário. No início comíamos na mesa com os outros integrantes do laboratório do Lucas, Thales e Thamise. Descobrimos que os franceses comem muito rápido e ninguém levanta enquanto todos da mesa não tenham terminado. Ficavam, portanto, esperando nós (geralmente o Thales) terminar toda nossa refeição pra só então levantarem apressados e desaparecerem de vista. Depois de um tempo decidimos que era melhor deixá-los sossegados na pressa deles e sentarmos os brasileiros em outra mesa onde podíamos comer na velocidade que quiséssemos e ficar conversando ainda sentados e de pratos vazios o tempo que quiséssemos. Trocávamos idéias sobre os problemas que tínhamos em nossas pesquisas, nos ajudávamos uns aos outros e, depois que terminávamos de comer, nos dirigíamos ou à máquina de café onde prolongávamos a conversa ou nos esticávamos sentados no gramado, onde também prolongávamos a conversa até a hora de voltar à labuta.
Voltávamos pra casa, jantávamos juntos, adicionando-se a nós também o Neil e às vezes até o Pedro, numa janta farta de comida e conversa.
Quatro meses passaram-se dessa rotina. E nos fez aproveitar mais os tempos livres, os fins de semana, planejar as viagens para os feriados. Fomos Lucas e eu para Barcelona em um feriado prolongado. Fomos Lucas, Thales, Thamise, Bruno e eu em uma viagem de carro pela Côte d’Azûr, a costa sudeste da França, em outro feriado prolongado, o que foi, de longe, a melhor viagem que fiz no ano.
Éramos sete brasileiros morando juntos, a divisão entre cubículos de 9m² que no início chamávamos de ‘nossos quartos’ já não fazia o menor sentido e tinha pouca utilidade. E por vezes ainda se adicionava à nossa companhia o Jorge, outro brasileiro que não tinha o seu cubículo na residência, mas nem por isso se sentia menos parte da família, pois é o que éramos. E seremos.
Tínhamos uns aos outros e isso era tudo o que tínhamos, 24 horas por dia 7 dias por semana.
Sétima. A despedida.
Acabou o estágio. Minha mãe veio me visitar, matamos um pouco da saudade imensa e de quebra vimos muita coisa legal nos curtos 10 dias que passou aqui.
Mudamos de residência, tendo que dar adeus a tudo que foi vivido na antiga residência Puvis de Chavannes.
O Neil e o Pedro anteciparam a volta e foram pra casa no meio de julho. Os primeiros que se separam dos nossos.
Passei, em seguida, uma semana viajando. Munique, Londres e Amsterdam. Encontrando com o Thales em Londres e Amsterdam e com o Lucas em Amsterdam.
Voltei a Lyon, praticamente junto com o Lucas, que chegou apenas um dia depois. Passamos uma semana aqui em Lyon - Lucas, Rafael, Marcelo e eu. Na nova residência já não existia esse negócio de ‘meu arroz’, ‘minha caixa de hambúrgueres’, ‘meu pão’, ‘meu prato’, ‘meu copo’. Tínhamos simplesmente 4 quartos com coisas espalhadas por três deles e tudo era de todos. A divisão fazia ainda menos sentido que antes.
Foram se despedindo aos poucos. Marcelo e Rafael foram numa quinta feira no fim da tarde. Lucas foi numa sexta feira. Não sei quando e se os verei novamente.
Foram sete vidas. Sete etapas completamente diferentes durante um ano. Em que comecei como ‘eu’ e terminamos como ‘nós’. Todos juntos passamos pelas dificuldades e alegrias e as compartilhamos.
Fomos privados de muitas coisas das quais antes não nos dávamos conta da importância ou sequer da existência. Coisas que nós só podemos saber que existem quando não mais as possuímos ao alcance das mãos.
Aprendemos o significado e importância de casa. Algo onde nos sentimos seguros em toda e qualquer circunstância. Se TUDO der errado, temos um lugar que nos acolherá e nos deixará completamente seguros e confortáveis. O melhor lugar do mundo.
O Brasil. Eu particularmente não era muito orgulhoso ou feliz de morar no meu país. Pensava em outros países como o paraíso, sem nada daquilo que me irritava no Brasil. Sem pensar, porém, em tudo aquilo que só meu país tem e que tanto amo e dependo sem perceber. Se compararmos a infra-estrutura, a educação e todo esse blá-blá-blá que a gente já conhece de trás pra frente, o Brasil está longe dos países ‘desenvolvidos’ daqui. Mas a simplicidade, a humildade, a informalidade, a alegria sem motivo, enfim, o sorriso que nosso país tem é único. A conexão que podemos sentir uns com os outros no Brasil é única.
Não estou falando de um País das Maravilhas onde todos saem pulando, sorrindo, cumprimentando, e ajudando velhinhos a atravessar as ruas. Isso só existe nos filmes da Xuxa. Claro que muito do Brasil, sobretudo as grandes cidades, já foi infectado pela pressa do humano moderno, quebrando essa conexão humana. Mas, ainda assim, se soubermos procurar, acharemos o sorriso.
Escrevo esse texto hoje, no dia 9 de agosto de 2010. Faltam seis dias pra eu voltar pra minha casa. Na verdade, uma das minhas casas, pois tenho, no mínimo 3 lugares que posso chamar de casa no Brasil. Ainda não posso, pois, dizer das sensações e emoções de voltar pra casa. De sentar no sofá da minha sala, na minha casa, rodeado por minha mãe, meu pai e meu irmão conversando e rindo de qualquer besteira. Mas posso dizer que não me lembro de ansiar tanto e com tanta felicidade por um momento quanto anseio, agora, por esse.
Encerro assim os posts deste blog. Pelo menos os enviados da França. Talvez escreva ainda algo de lá onde canta o sabiá, pois as aves que cá sorriem, não sorriem como lá.
Sorria!