quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Short Story 3 - Thales no Concerto

Quem conhece sabe: o Thales não é uma pessoa muito comum. E, por isso, todos nós daqui o agradecemos por ter vindo para Lyon.

Foi ontem. O Woyten ia tocar piano como parte de uma orquestra de sopro aqui perto da Puvis, no campus da universidade. O concerto começaria às 8:30 da noite. Tínhamos combinado que sairíamos às 8:15 daqui, e quem disse esse horário foi o Thales. Passou o tempo e, quando o relógio marcava 8:15, lá estava Thales no corredor, com uma toalha enrolada na cintura, indo tomar banho. Excelente! Fomos todos antes dele, pra não chegarmos atrasados.

Chegando lá, nos instalamos e guardamos um lugar a mais. O Thales chegou a tempo, antes do início do concerto. Ficamos sabendo na hora que o concerto teria duas partes: uma com a orquestra de sopro e Woyten no piano e outra com a orquestra sinfônica da universidade, sem o Woyten no piano. A primeira parte correu normalmente.

Para a segunda parte, mais cadeiras foram adicionadas ao palco, pois a orquestra sinfônica era um pouco mais numerosa. Como já era de se esperar em um concerto no campus da universidade, tanto a orquestra quanto a platéia eram quase exclusivamente compostas de alunos. E muitos, é claro, se conheciam. Assim, antes da orquestra começar a tocar, alguém no centro da platéia começou a gritar os nomes dos conhecidos, seguido de saudações do resto da platéia:

- Carole!

- AEEeEeeeEeEeeeEEe!!!

- Camille!

- AeEeeEeeEeeEeEEeEe!!!

-François!

- AeEeEeeEeeeeEeEeEe!!!

O único músico que nós conhecíamos era o Woyten, que nem estava mais no palco. Então não participamos da bagunça... até então. Eis que Thales se curva na cadeira e grita: “Flamengo!!!!!!”.

De todas as palavras existentes no mundo o Thales conseguiu achar e gritar naquela situação a mais engraçada de todas!

Só os brasileiros riram...

Pois é... esse é o Thales.

*Ouvindo – “Incognito – Tribes, Vibes and Scribes”

sábado, 14 de novembro de 2009

Paris - 10 de Novembro de 2009

Tudo começou quando o site do cantor de jazz Kurt Elling foi atualizado com novos shows. Dia 10 de novembro ele tocaria em Paris, no New Morning. Comprei o ingresso e as passagens. Tinha uma prova no mesmo dia 10 pela manhã. Sairia de TGV às 12:00 e voltaria dia 12 às 6:00, pois tinha que chegar em Lyon a tempo para a visita médica na OFII – ofício de imigração francês. O Neil também comprou passagens. Ficaríamos hospedados com o Marcel, na Maison des Arts et Métiers.

Vamos então às histórias da cidade. Paris é aquilo que todo mundo já ouviu ou leu. Lugares maravilhosos, visões incríveis no meio da cidade. Música nas ruas. O Louvre, a Torre Eiffel, a Champs Elysée, o Arco do Triunfo. Mas isso tudo todo mundo já conhece, e sabe que é realmente fantástico. Se não conhece, leia o artigo da Wikipédia sobre Paris e passará a conhecer.

O que eu vou contar aqui são histórias de uma viagem a Paris. A nossa falta de sorte, as entranhas e feiúras de Paris. Marcas do aglomerado humano fora de controle dentro de uma cidade supostamente mágica e perfeita.

Dedico este parágrafo ao Marcel, que provavelmente não gostará dos parágrafos seguintes. O Marcel ama Paris, ama defender Paris, ama morar em Paris, ama passear em Paris, ama mostrar Paris, e o fez muito bem. Mostrou-nos muito da cidade para o pouco tempo que ficamos. Viu, Marcel! Eu gostei de Paris, apesar de tudo que vou escrever aqui, mas toda a parte fantástica, mágica e perfeita da cidade é óbvia quando escrita, só faz sentido quando é vivida. Valeu pelo tour!!

Comecemos.

Chegamos à Gare de Lyon, no leste de Paris. De lá, sabíamos que tínhamos de pegar dois metrôs: o ‘D’ até a Châtelet depois o ‘B’ até a Cité Universitaire. Esperando onde o trem deveria chegar, a imagem que tínhamos de Paris começava a mudar. Sons de outros trens passando em outros andares faziam tremer o chão, dando a todo o lugar uma atmosfera extremamente hostil, que se reafirmava com o cheiro horrível da estação e o semblante fechado e desconfiado das pessoas que esperavam conosco.

O trem chegou: imenso, barulhento, antigo, vidros riscados, faíscas nos trilhos.

Dentro só viam-se negros. Aqui na França acontece algo muito parecido com o que acontece no Brasil. No Brasil, existe uma migração grande de nordestinos para as grandes cidades, em busca de uma vida melhor, e estes, normalmente, formam uma grande parte da parte mais pobre da sociedade, naturalmente, pois não é tão fácil assim subir de classe econômica. Aqui na França, os africanos do Maghreb – sobretudo Marrocos, Tunísia, Argélia – que tem francês como segunda língua, vem para a França em busca de oportunidades, e formam as classes mais pobres do país. Como esse metrô que estávamos pegando vai das periferias para o centro da cidade, os negros eram maioria.

Depois de uma viagem que mais parecia um trem fantasma, com barulhos de atrito de metal, vibrações exageradas e pichações ao longo de toda a parede do túnel do metrô, chegamos enfim à maior estação de metrô de Paris: Châtelet-Les Halles. Seguimos as sinalizações para o metrô B, direção Cité Universitaire, foi fácil de encontrar, descemos uma escada viramos à esquerda e, onde deveriam estar pessoas esperando o mesmo trem que iríamos pegar, estava uma faixa de contenção, e ninguém esperando. O trem que precisávamos não estava lá. Subimos sem rumo, sem saber o que deveríamos fazer. Depois de alguns minutos olhando no mapa do metrô, sem saber direito o que estávamos procurando, um aviso nos auto-falantes avisou que a linha B estava interrompida em certo trecho, por razão da greve da rede de transporte de Paris, e que deveríamos pegar o metrô 4 para substituir.

Com o fluxo desviado, o metrô 4 estava completamente lotado, é claro. Mas, enfim, chegamos à casa do Marcel e fomos passear. E a onda de azar continua...

Quando chegamos ao Jardin des Tuileries, estava em reforma, e sua parte central, a mais bonita, inacessível. Tudo bem... Continuamos reto e chegamos ao Louvre, único momento com absolutamente nenhum contratempo ou azar. A hora do dia era perfeita, anoitecendo, um céu azul marinho com nuvens desenhadas. Ao fundo o holofote da Torre Eiffel girava, e a pirâmide colossal do Museu se destacava em nossa frente, contrastando com a aparência medieval do Museu. Um violoncelista tocava em um ponto com acústica privilegiada, completando o momento mais incrível que passei em Paris.

O resto do dia foi dedicado ao show do Kurt Elling. Mais metrôs lotados, correria, chegamos em cima da hora e sentamos na escada, lugar este que percebemos depois ser o melhor que poderíamos ter ficado.

Dia 11 de novembro, feriado do Armistício da 1ª Guerra Mundial. Acordamos cedo para aproveitar o dia. Saímos direto para a Place de La Concorde, início da famosa Avenue des Champs-Elysées. Obviamente, a Place de La Concorde estava em reforma, mas pelo menos nos restava a Champs-Elysées. Foi o que pensamos.

O acesso à Champs-Elysées estava restrito às calçadas, a rua estava fechada para o evento de comemoração do Armistício. Mesmo assim percorremos toda a extensão da avenida, para chegarmos ao Arco do Triunfo. No meio do caminho vimos dois carros pretos saindo cantando pneus e colocando uma sirene azul no teto. Não é todo dia que se vê carros à paisana do serviço secreto francês descendo o cacete na Champs-Elysées.

Depois de percorrer toda a extensão da avenida, nos deparamos com uma barreira, uns 120 metros antes do Arco. O evento estava acontecendo embaixo do Arco. Com direito a Sarkozy, Angela Merkel e bandeira gigante hasteada no centro do Arco. Mas é claro que não dava pra ver nada disso daquela distância. Aliás... A bandeira a gente via.

Agora a Torre Eiffel! Vamos lá! É logo ali, peguemos o metrô. Chegamos ao Trocadéro, lugar que, segundo o Marcel, tem a melhor vista da Torre. Chegando lá, de fato a vista era fantástica, mas algo estava errado. Metade da Torre estava sob densa neblina. Excelente. Mais sorte!

Na Torre Eiffel, se você desentortar o pescoço para olhar horizontalmente pras pessoas e não verticalmente para o topo da imensa torre, você coisas interessantes, como não podia deixar de ser. Esse lugar é um lugar muito especial. Gente do mundo inteiro, com dinheiro e instinto consumista no nível máximo passa por ali todos os dias a toda hora. Assim, não podem deixar de serem criados atividades e eventos únicos.

Quando você desvia o olhar do topo da Torre, você vê que ali é o point do comércio turístico clandestino. Este ponto é dominado pelos negros. Eles tem suas próprias leis, só negros podem vender ali. Negros por todos os lados carregam suportes com dezenas de chaveiros da Torre Eiffel, sacudindo-as fazendo um barulho característico. Oferecem as miniaturas para os turistas sem olhar para eles, o olhar fica fixo nas escadas, de onde podem vir policiais. Às vezes alguém da um grito de alerta e todos saem correndo, mas logo voltam. Assim, eles não fazem a menor idéia de pra quem eles já ofereceram e pra quem ainda não ofereceram a mercadoria, então eles oferecem de um em um minuto, sem se importarem se já ouviram ‘não’ da pessoa.

Um problema grande deles é dizer de maneira objetiva para as pessoas quanto custa as miniaturas, pois ali existem pessoas do mundo todo. A cada 10 metros quadrados encontram-se 5 línguas diferentes, não é fácil de fazer todos entenderem o valor do souvenir. Cada torrezinha custa 1 euro. Eles então desenvolveram um jeito de falar ‘1 euro’ que não corresponde a língua nenhuma, mas o mundo todo entende. Eles chegam, balançando as torres e falando: ‘onerô, onerô, onerô’. De alguma maneira, todos entendem.

Mais embaixo, em lugares que os turistas passam, mas não param, encontram-se alguns grupos de negros – de 3 a 5, geralmente – conversando. Quando você passa perto eles tiram a mão do bolso revelando algumas fitinhas, como aquelas do ‘Senhor do Bonfin’, da Bahia. E tentam puxar papo, segurando seu braço. O Marcel já nos tinha avisado que eles puxam papo e agilmente amarram a fitinha no seu braço, e depois exigem 5 euros por aquilo que já está no seu braço e não pode mais ser desamarrado.

Não achei que encontraria esse tipo de coisa na Europa. Pelo menos não tão explicitamente. Mas, como disse antes, são marcas do aglomerado humano fora de controle. O oportunismo toma conta, e a cidade toma um ar hostil, tornando os habitantes, estressados e desconfiados.

Essas experiências em Paris me fizeram sentir uma imensa saudade de Lyon. Ruas limpas e tranqüilas. Estações de metrô inodoras e silenciosas. Pessoas sorridentes e simpáticas. Noite tranqüila. Dou um conselho: se você gosta da França, visite Paris, mas viva em Lyon.

Na noite do dia 11 para o dia 12 dormimos só 3 horas, acordando às 4 da manhã pra pegar um táxi para a Gare de Lyon e voltar pra casa.

E a viagem se acabou. Mas hei de voltar a Paris, as passagens já estão compradas, e mais histórias virão.


* Ouvindo – “Madeleine Peyroux – Bare Bones”

sábado, 31 de outubro de 2009

Genebra - Outubro de 2009

Comecemos pelo momento que a decidimos que viajaríamos. Era uma terça-feira, dia 27 de outubro, de noite. O Lucas entrou no meu quarto e disse, sem rodeios: “Vamos pra Genebra depois de amanhã? Todo mundo vai!” e eu, sem titubear respondi: “Sim!”. Pronto. Assim começou a viagem.

Iríamos eu, o Lucas, o Neil, o Thales, o Pedro, a Thamise, a Maria Fernanda e a Carolina. Apesar de ter sido uma decisão repentina, já estava tudo certo. Partiríamos no trem das 6:51 da manhã e voltaríamos no último trem do dia, às 20:44.

Passemos agora a quarta-feira. Passagens já compradas, de noite a Thamise me mostrou um mapa de Genebra que uma amiga dela havia lhe dado. O relógio mostrava algo por volta das 11 da noite quando resolvi pegar esse mapa pra tentar conhecer a cidade e planejar algum trajeto. Genebra é uma cidade pequena, de um ponto turístico a outro não andaríamos mais do que 1,5km. No fim das contas, terminei de olhar o mapa a 1:15 da madrugada. Tendo que acordar às 5:00 da manhã no dia seguinte, desabei na cama num sono só.

Pí, pí, pí!! O despertador do celular tocou depois de insuficientes 3 horas e meia de sono. Por alguns segundos me senti cansado e totalmente incapaz de levantar o braço e acender a luz, mas quando me veio na cabeça “daqui a pouco estarei na Suíça!”, levantei sem sono e com total disposição. Saí do quarto com a toalha na mão chutando as portas dos que ainda não haviam acordado.

Quando eram 6:10 estávamos todos prontos, dentro do tramway indo para a estação Part-Dieu. O trem partiu pontualmente às 6:51. Às 8:37 desembarcávamos na estação Cornavin em Genebra. Trocamos nosso dinheiro, compramos alguns francos suíços. Agora começa o passeio.

Pegamos a saída noroeste da estação, entrando na Rue Montbrillant em direção norte para irmos ao palácio da ONU, primeira parada do tour. Todos animados e com máquinas fotográficas em mãos registrando a euforia do início da viagem. Uma caminhada rápida já revelou características diferentes. Por vezes com traços antigos, detalhes rebuscados nas fachadas e nos telhados, mas mais bem conservada que a arquitetura de Lyon. Enquanto aqui em Lyon temos a impressão de estarmos andando em meio a construções antigas que estão no mesmo lugar a centenas de anos, em Genebra temos a impressão de estarmos andando em meio a construções antigas sem a ação das centenas de anos sobre elas, como se tivéssemos sido transportados nós mesmos para centenas de anos atrás, onde tudo isso não tinha aparência de antigo.

Nesta parte da cidade, mais nova, muitas construções são realmente modernas, espelhadas, curvas, diagonais... No melhor estilo ‘arquiteto do século 21’.

Outro aspecto marcante que ficou evidente já neste primeiro trecho de caminhada foi a elevadíssima renda da população suíça. Vou deixar o festival de carros absurdos que desfilavam pelas ruas por conta da imaginação dos que se interessarem. Diferente do Brasil ou mesmo aqui de Lyon, em Genebra quando víamos um carro caro, esportivo, luxuoso, não estava sendo guiado por um jovem querendo chamar atenção dos outros. Em Genebra, quando passava do nosso lado uma Mercedes ou um Jaguar daqueles de 6 metros de comprimento, atrás do volante estava um tiozão, cabelos brancos, paletó e gravata, óculos escuros; interessado em nada além do conforto que ele merece e pode comprar.

Chegando ao fim da Rue Montbrillant, pegamos um pequeno trecho da Avenue de France. Depois de atravessar a Places dês Nations, chegamos à ONU. Nenhuma emoção especial. Atrás de um alto portão fechado um corredor ladeado por dezenas de bandeiras de todo o mundo. Um muro onde se lia ‘Nations Unies – United Nations’. E só.

Saindo da ONU continuamos agora em direção leste pela Avenue de la Paix. Até o vizinho da ONU, o Jardim Botânico; este sim, nos ofereceu algo de especial. No fim de outubro, em pleno outono. Não podíamos ter escolhido época melhor para visitar o Jardim. Um festival de cores formava um caos natural perfeitamente harmonioso. Estava frio e muito úmido, fazendo a grama ficar muito molhada, como se estivesse chovendo. Sapatos molhados e câmeras fotográficas mais cheias, saímos do jardim no cruzamento entre a Avenue de la Paix e a Rue Lausanne. Deste ponto bem ao norte da cidade, podíamos ver o famoso Jet d’Eau, a dois quilômetros de distância, mesmo com vários prédios no meio do caminho, o jato se destacava jorrando água a 140 metros de altura. Continuamos em direção leste, cruzando a Rue Lausanne e entrando no Parc Barton.

No Parc Barton chegamos pela primeira vez à beira do Lac Léman. De um lado do para-peito o imenso lago cristalino repleto de cisnes e gaivotas, do outro lado vastos gramados e palacetes dos quais não se sabe a finalidade, mas não podiam deixar de estarem lá. Uma quinta-feira, às 10:00 da manhã e víamos muita gente correndo no parque, andando de bicicleta, lendo um jornal na beira do lago. Não sei como funcionam as cargas horárias dos empregos na Suíça, mas sei que dá certo, e a qualidade de vida é alta.

Depois de contornar parte da borda do parque, chegamos à parada do barco. O barco, em Genebra, faz parte do transporte público da cidade. No lugar que ele pára, tem uma maquina como aquelas que achamos em cada parada de tramway ou ônibus. Compramos um ticket válido por todo o dia, para toda a rede de transporte: ônibus, metro, tramway e barco. Enquanto estávamos comprando os tickets, chegou um senhor, com seus 60 anos, lendo as informações na máquina de comprar tickets. Eu me desculpei por estar na frente da máquina e ele, percebendo que falávamos outra língua, respondeu: “It’s OK”. Achei que fosse também um turista, mas depois o ouvi falando algo em francês com o típico sotaque suíço.

O sotaque suíço. Esse merece um parágrafo antes de voltarmos para o tiozinho da parada de barco. Antes de irmos, o Jean-Luc, conhecido e barrigudo guarda noturno da Puvis, nos tinha dito, fazendo piada, do sotaque dos suíços. Imagine um francês falando francês, como nos filmes. Esse é o sotaque da França. Tá, agora imagine um baiano falando francês – esse é o sotaque suíço. Isso! Eles falam devagaaar, alongando as vogais das sílabas tôôônicas. É exatamente um baiano falando francês. Bom, voltemos ao tiozinho.

Esperando o barco, com os tickets já comprados, eu cheguei e perguntei para o senhor, só pra ver se ele dava papo: “Você é francês?”. O tiozinho, muito contente que nós todos falávamos francês, começou a conversar e nos mostrar os lugares legais da cidade e contar um pouco da história da cidade, até chegar à parada que ele tinha que descer. Muito simpático, o tio suíço.

Bom pra situar novamente o passeio no mapa, descemos do barco do outro lado do lago, ao norte do Parc des Eaux-Vives, no cruzamento entre a Quai Gustave Ador e a Rampe de Cologny, num lugar que eles chamam de ‘Genêve Plage’. Continuamos agora em direção sudoeste pela Quai Gustave Ador. Entramos no Parc dês Eaux-Vives, que é também um hotel e um restaurante. A imponência do hotel, com um vasto campo gramado na frente, inspira dinheiro, luxo e uma limousine Mercedes preta com vidros fumês. Tiramos umas fotos e continuamos o passeio.

Ainda na mesma Quai Gustave Ador, continuamos até chegar ao Jet d’Eau. Um jato colossal lançando ao ar 500 litros de água por segundo a uma velocidade de 190km/h até uma altura de 140 metros utilizando duas bombas de 500kW de potência cada a uma tensão de 2400V. Papo de engenheiro, mas como éramos 7 estudantes de engenharia visitando Genebra e sei que pelo menos dois engenheiros vão ler este texto, acho que estas informações não são fora de contexto.

Neste mesmo lugar da orla do Lago Léman, víamos muita gente sentada na beira do lago, algumas com sua família, um cidadão fumando um charuto, outro comendo seu almoço, outro repartindo o seu com os cisnes e gaivotas que brigavam disputando os pedaços de pão.

Neste ponto do passeio já estávamos todos famintos! Continuamos então por mais alguns passos na Quai Gustave Ador viramos a esquerda na Rue Pièrre Fatio, depois à direita no balão – Rond-Point de Rive – e lá estava ele: um magnífico e brilhante McDonald’s. Lá dentro nos deparamos com outra característica marcante de Genebra. Como o tiozinho do barco já nos tinha dito, Genebra é uma cidade extremamente internacional. No McDonald’s víamos grupos de jovens, com 16 ou 17 anos, conversando fluentemente em francês, e mudavam repentinamente para o inglês, e voltavam para o francês e encontravam um outro amigo com o qual falavam em inglês. Diferente da França, em Genebra todos falam inglês como segunda língua, pelo menos. Geralmente falam também alemão e/ou italiano, as outras duas línguas oficiais do país.

Enfim, mandamos um belo lanche, nos impressionamos com a máquina de secar mãos do banheiro e continuamos o passeio.

Continuamos em direção oeste na Rue de Rive, pegamos a segunda rua à esquerda - Rue de La Fontaine - subindo, em direção sudoeste, passando pela Taverne de La Madeleine, atravessando a Rue de l’Evêché, passando em frente ao Museu Internacional da Reforma Protestante e chegando, enfim à catedral Saint-Pièrre. Seis imensas colunas se destacavam na fachada da catedral. Em seu interior o estilo neutro chamava atenção. Paredes e colunas cinzas, sem vitrais ou afrescos coloridos ou imagens douradas. As colunas internas parecem um conjunto de cilindros agrupados paralelamente, diferente das comuns colunas simples cilíndricas com as quais estamos acostumados. No altar nada de imagens douradas e concentração de detalhes. Para a iluminação, dois lustres simples e circulares ao longo do corredor central. Se destacava apenas o imenso órgão no fundo da igreja, acima da grande porta principal. O estilo diferente, apesar de simples, é muito bonito e inspira um templo religioso austero, despoluído e menos luxuoso.

Enquanto descansávamos ao lado da catedral, eu, Neil, Thales, Pedro, Carolina, Maria Fernanda e Thamise, esperávamos o Lucas, que tinha sumido. Quando eu, a Thamise e a Carolina resolvemos ir à frente da catedral esperá-lo, ele acabava de sair, nos dizendo que tinha subido na torre da igreja e que tínhamos que ir lá. Depois de subir - eu e o Lucas contamos - 147 degraus de uma escada helicoidal quase vertical com um diâmetro de não mais de 1,5m, nossos ombros encostando nas paredes e na coluna central da escada, chegamos ao topo da Torre Norte da igreja. Uma vista panorâmica completa da cidade nos foi apresentada bem como os Alpes Suíços tão longínquos quanto colossais, ao fundo da paisagem.

Saindo da catedral, pegamos a direção sudoeste na Rue Du Perron seguindo reto passando pelo Hôtel de Ville e descendo pela Rampe de La Treille até chegar à Place de Neuve de frente ao Grand Thêatre e ao conservatório de música inaugurado em 1835. Entramos então nos domínios da Universidade velha de Genebra, no Parc des Bastions onde tem o Monumento Internacional da Reforma Protestante - o Muro dos Reformadores - com as imagens de Lutero e Calvino e alguns outros que não sei quem são. Mas era um muro grande, branco e bonito.

O Parc des Bastions é muito bonito, apesar de pequeno. Logo na entrada vimos uma área peculiar, destinada a jogos de xadrez e damas. Tabuleiros pintados no chão, de 5x5 metros, ou algo próximo a isso, com peças de xadrez de meio metro de altura ficam à disposição de quem os quiser utilizar. Em volta de cada um dos tabuleiros vê-se um pequeno aglomerado de terceira idade compenetrados no jogo de xadrez de dois outros representantes da ‘melhor idade’. Os jogos não são exclusivos para os mais velhos, mas este simplesmente é um público que parece ser naturalmente mais atraído por essa atividade.

Cada um dos espectadores ou jogadores é uma caricatura. Um com uma expressão cansada, muitas rugas e um cachimbo pendendo da boca, uma baforada de fumaça aqui e ali. Um japonês com cara de Yakuza fumando um cigarro enquanto pensa na sua estratégia para destruir o adversário num xeque-mate relâmpago. E por aí vai.

Neste parque sentamos um pouco para descansar. Checando o celular casualmente para procurar alguma rede Wi-Fi gratuita por perto, para nossa surpresa, achamos! O nome da rede: “Ville de Genève”, ou seja “Cidade de Genebra”. É uma rede completamente gratuita e rápida que, penso eu, está disponível em lugares como parques ou pontos turísticos mais freqüentados. Uma rede de internet fornecida pela cidade gratuita para todas! A evolução tecnológica que todo engenheiro eletricista, de redes ou de telecomunicações sempre sonhou.

Pronto, o itinerário que havíamos planejado se acabou, e ainda nos restavam 3 horas de passeio! Genebra é uma cidade fantástica para se fazer um dia de turismo, você conhece os principais pontos a pé com sobra de tempo. Claro que ainda há muito mais a conhecer, mas dá pra conhecer muita coisa sem precisar pagar um albergue ou um hotel.

Resolvemos então sair andando pelas ruas próximas procurando coisas pra comprar, ver ou fazer. Fomos andando em direção norte, na Rue de La Corraterie. Por esta rua passa uma linha de tramway e sua margem oeste é ornamentada com dezenas de bandeiras suíças enfileiradas, penduradas no prédio. Foi quando eu e o Neil vimos algo que deu um pico na concentração de serotonina no sangue. Na calçada do outro lado da rua, as alvirrubras bandeiras emolduravam um pequeno conjunto de cadeiras e mesas; lia-se na fachada: “Chocolaterie”. O resto da história é previsível e, portanto, dispensável.

Com nossos pequenos saquinhos de veludo vermelho contendo 100 gramas dos maravilhosos chocolates suíços legítimos cuidadosamente protegidos dentro de nossas mochilas, continuamos o passeio.

Continuamos um pouco mais na Rue de La Corraterie até virarmos à direita na Rue Du Rhône. Esta nos pareceu ser a rua principal desta parte da cidade, pelo menos para o comércio. Tinha alguns shoppings, um cinema e um tiozinho tocando uma caixinha de música, como nos filmes que tem um macaco girando a manivela e tocando a música, só que aqui não tem macaco... Era só um tiozinho gordo.

Chegando à igreja protestante na margem norte da Rue Du Rhône, paramos um pouco para descansar. Eu e o Lucas compramos um Panini num trailer. Pedi o meu pro cara do trailer e ele disse: “Qual é a sua nacionalidade? Você é alemão?”. Pensei: Como assim?!?!?!, e disse: “Não, sou brasileiro”. Então ele se explicou que não diria pela minha cara que sou alemão, mas meu francês parecia ter sotaque alemão. Essa explicação faz tanto sentido quanto dizer que eu tenho cara de alemão, mas tudo bem. O Pedro comprou um canivete suíço pro pai dele e continuamos o passeio.

Continuamos em direção norte, cruzando o lago pela Pont des Bergues. Nesse ponto o lago pode ser atravessado por pontes, porque ele já está se estreitando para se transformar no Rio Rhône, rio este que, por coincidência, passa por Lyon.

Viramos então à esquerda, na Quai des Bergues, e depois à direita na Rue Rousseau, onde, pra nossa alegria, encontramos um Starbucks. A caixa do Starbucks nos mostrou novamente a diferença lingüística entre os suíços e os franceses. Em Lyon se você pede um “Caramel Macchiato”, pronunciando este nome como um americano ou inglês pronunciaria, ou a caixa não vai entender o que você disse ou vai repetir o nome com o horrendo sotaque francês. Na suíça, quando pedi o Caramel Macchiato, a caixa repetiu o nome, confirmando o pedido, num inglês tão perfeito que achei que estava nos EUA. Enquanto isso, na mesa mais próxima ao caixa, estavam alguns engravatados conversando sobre negócios em inglês com sotaque americano, a primeira vez que escuto inglês americano desde que eu cheguei na Europa. A convivência que os suíços, pelo menos os de Genebra, tem com outras línguas e culturas os deixa muito mais flexíveis, compreensivos e civilizados.

Compramos alguns copos de café, sentamos nas poltronas do lado de fora e ficamos conversando por cerca de uma hora até que decidimos que já podíamos ir de volta para a estação Cornavin. Subimos pela Rue Rousseau, continuando sempre reto na Place Cornavin e chegando, enfim, na estação. Pegamos o trem que novamente saiu pontualmente às 20:44 e voltamos pra casa.

Assim se passou nossa primeira viagem na Europa. Quando chegamos aqui o pensamento que não nos saía da cabeça era: “Fui pra Suíça! Hoje eu fui pra Suíça, passei o dia ali e voltei pra minha casa, na França”. A ficha vai caindo aos poucos aqui.


*Ouvindo - "Los Hermanos - Ventura"

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Conhecendo o 'Huitième'


Esta é a planta baixa do oitavo andar do prédio da residência Puvis de Chavannes. Na verdade é o plano de evacuação de incêndio, quadro orbigatório em todos os prédios aqui na França. Mas serve para o que eu quero mostrar. Este post serve, na verdade, pra ilustrar outros anteriores. Agora o post do 'Banheiro' ficou ainda mais gráfico. Se é que isso é desejável...

Bom, vejamos novamente apartamento por apartamento:

  • 801 - Eu. No fim do corredor, ninguém passa aqui na frente a não ser que queira falar comigo. É sempre bem calmo e eu posso ouvir música sem atrapalhar o resto do andar, e o barulho do andar também não me atrapalha.
  • 802 - Thamise.
  • 803 - Thales. Igual o quarto da Thamise, praticamente. Na frente da cozinha: se alguém frita batata frita, o quarto fica com cheiro de McDonalds; se alguém frita linguiça, o quarto vira um churrasco de domingo. É relativamente longe da área mais movimentada, então também é um quarto tranquilo.
  • 804 - Neil. Diretamente voltado para a parte mais larga do corredor, onde acontece de tudo. Jogo de baralho à meia noite, treinamento de malabarismo (sério...), futebol (tô falando sério!), gritaria... O Neil, muito tolerante, não fica muito feliz.
  • 805 - Micha. O alemão que promove os tais treinamentos de malabarismo no corredor. Ele quer ensinar todo mundo a jogar aquelas três bolinhas. Também quer ensinar Ultimate Frisbee pra todo mundo. Muito gente boa, alemão típico.
  • 806 - Pedro. Um brasileiro de Uberlândia. Não o conheço muito bem.
  • 807 - ???. Um espanhol que não fala quase nada de francês. Não importa a hora do dia que ele te encontra ele fala "Bonsoir!", que significa "Boa noite!". Acho que ele não faz a menor idéia do que ele está falando.
  • 808 - ???. Um eslovaco magrelo que não fala nem olha pra ninguém. Ele sai de cueca do quarto andando pelo corredor quando vai tomar banho. Eu, por sorte, nunca vi tal cena. Mas ouvir a história já é desagradável o suficiente.
  • 809 - Alma. Mexicana.
  • 810 - Anette. Mexicana barulhenta.
  • 811 - Pedro. Carioca muito gente boa, também bolsista da Brafitec. Ele gosta de funk. As Havaianas dele arrebentaram, e ele pediu pra mandar outro par do Brasil por Correio. E não é sem sentido o pedido dele. É difícil achar um chinelo decente por aqui.
  • 812 - Lucas. Carioca também muito gente boa, apesar de flamenguista, coitado... Nos dias de jogo do Flamengo, sai de perto! Ele dá um jeito de assistir, sempre. O pai dele põe a webcam virada pra TV e deixa na conversa por vídeo no MSN, pra ele assistir. Se o flamengo perde, ele grita de raiva, se ganha ele grita de felicidade.
  • 813 - Carolina. Como o Lucas, abençoada com um dos dois quartos de frente para o banheiro. Agora, com a foto da planta, dá pra entender melhor o privilégio.
  • 814 - Woyten. O alemão mais brasileiro da região. Ele sempre tem cerveja alemã no quarto. Muita cerveja alemã. Ele está me ensinando alemão. Sempre que cruzo com ele, ele diz: "Andrrrê!! Wie geht's?!". Um dia ele tomou um porre de piña colada e teve dor de barriga. Ficou o resto da noite dizendo "Piña colada nunca mais!!".
  • 815 - Cindy. Francesa de origem polonesa que gosta de Radiohead, Ray Charles e não gosta dos franceses. Jovem.
  • 823 - Pièrre. Um francês que chegou há alguns dias. Quando me encontrou no corredor, me perguntou quando a residência ia nos dar os edredons! Viajou bonito, né? Ele vai ter comprar seu próprio edredon ou se acostumar com os cobertores que nos deram, finos e que pinicam.
  • 826 - Nolwenn. Francesa de Rennes - capital do estado frances 'Bretagne' -, ou seja, uma verdadeira Bretã!! Muito gente boa, quando conversamos com ela ela sempre nos interrompe a cada frase errada, para corrigir nosso francês. Uma hora conversando com ela equivale a 6 meses de curso de francês no Brasil.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Short Story 2 – ‘Tu sais comment il s’appelle ?’

Antes de começar, vejamos um pouco do contexto futebolístico francês.

O time da cidade de Lyon é o Olympique Lyonnais, ou o ‘OL’, como os torcedores mesmo o chamam. Como no Brasil, aqui existem as rivalidades entre times: Atlético-PR e Coritiba, Internacional e Grêmio, Atlético-MG e Cruzeiro, e por aí vai... Pois então, o ‘anti-OL’ aqui é o time de Marseille, o Olympique de Marseille.

As reações dos torcedores franceses ao seu time rival são as mesmas dos brasileiros. Jean-Luc, o guarda noturno barrigudo, é torcedor doente do OL, se eu chego pergunto pra ele: “E o Marseille, como vai no campeonato?” ele só faz uma careta e dá uma banana.

Pois então, contexto explicado, vamos à história.

Algum gênio da direção do Olympique de Marseille teve a brilhante idéia, há algum tempo atrás, de contratar um atacante brasileiro. E esse brasileiro é o ilustre Evaeverson Lemos da Silva. Ele existe, juro! Mesmo com esse nome, ele tem até página na Wikipédia. Talvez por seu nome ser tão bonito, algum outro gênio decidiu dar um apelido pra ele, e achou que uma boa idéia seria, obviamente, "Brandão". Por quê, meu Deus? Por quê? Como um Evaeverson da Silva vira Brandão?

Aqui na França, todos são conhecidos primeiramente por seus sobre nomes, só depois as pessoas vão se interessar em seu nome. Sempre que o Jean-Luc me encontra e ele está conversando com um grupo de franceses, ele diz: "Tu sais comment il s'appelle? Brrandaô!!", ou "Você sabe como ele se chama? Brrandaô!", e todos, depois de perguntares, incrédulos: "É verdade?!", começam a rir. Maravilha, né?

Pelo menos as pessoas gravam meu nome rapidinho. Na aula de tênis, que eu faço junto com o Thales, eu estava jogando com um cara e, numa pausa, ele perguntou: "Qual é o nome do seu colega mesmo? O seu eu gravei rápido, por motivos futebolísticos, mas o do seu amigo eu não consigo lembrar.", eu, fingindo que não sabia quais eram os tais motivos futebolísticos disse: "Barbosa, o nome dele é Barbosa."

Depois fui descobrir que o cara era torcedor do Olympique de Marseille. Tá explicado porquê, quando eu estava jogando uma partida com outra pessoa, ele ficava do lado da quadra torcendo e falando "Brrandaô! Brrandaô! Brrandaô!"


*Ouvindo - 'Kurt Elling - Dedicated to You'

sábado, 17 de outubro de 2009

Short Story 1 - O Interfone no Carrefour

Escolhi, para abrir essa sessão do blog, uma situação passada há alguns dias atrás, curta, rápida e aparentemente insignificante, e, exatamente por isso, ilustra bem o que eu quero com a sessão de ‘Short Stories’.

Os franceses são em geral muito discretos. Você não vê gente gritando na rua, nem mesmo falando alto no telefone dentro de um ônibus ou metrô. Um francês não costuma fazer questão de notificar as pessoas que o rodeiam quando ele faz alguma coisa. Por isso, em um shopping, restaurante ou transporte, mesmo que lotado, não se ouve muito barulho.

Estava eu no Carrefour. Comprei algumas coisas pra comer e fui para o caixa. O Carrefour em questão era um ‘Carrefour Market’, como o ‘Carrefour Bairro’, do Brasil, pequeno. Aparentemente, a operadora do caixa teve algum problema com as compras da cliente na minha frente, e precisou da ajuda daqueles funcionários assistentes que ficam na frente de caixa e normalmente são acionados por uma pequena luz em cada caixa, no Brasil, ou, o que acontece mais frequentemente, a operadora do caixa berra: “Kateriiiine, chama a Joyce lá pra mim que a tela do computadô travô de novo!!!”. Isso faz sentido, claro. Por que você vai acionar um sinal luminoso se a pessoa da qual você necessita está a alguns passos de distância?

Mas a operadora de caixa francesa não pensou assim. O caixa em que eu estava era o mais próximo do balcão onde a assistente ficava. Quando digo próximo estou falando de 3 metros, ou pouco menos. A assistente estava conversando com um homem, cliente, funcionário, amigo... pouco importa. O que me chamou atenção foi que a operadora do caixa não gritou, nem sequer falou o nome da assistente, o que seria suficiente para esta ouvir o chamado. Ela tirou um pequeno interfone do gancho e esperou na linha, enquanto olhava pra assistente, que ainda conversava. Em alguns instantes a assistente terminou sua conversa e atendeu o interfone, olhando para a operadora do caixa, como que para ser ajudada pela leitura labial. Esta então disse algo como ‘Pode vir aqui um momento, por favor?’ numa voz muito baixa para ser ouvida. A assistente então saiu do balcão, deu dois passos, alcançou o caixa, resolveu o problema e voltou. Dá pra acreditar? Sem Joyce, sem Katerine, sem ‘computadô’ travado... O problema foi resolvido silenciosamente.

*Ouvindo – ‘Bobby McFerrin – Spontaneous Inventions’

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Short Stories - Introdução

As coisas aqui acontecem todo dia.

Situações rápidas e aparentemente insignificantes que dentro de meses escaparão de minha memória e se perderão para sempre. Aliás, perder-se-iam para sempre, se eu não pudesse registrá-las aqui, no blog.

É por isso que começarei agora a sessão ‘Short Stories’, onde contarei pequenos fatos ou situações do dia-a-dia que são relevantes o bastante para serem lembradas mas curtas o bastante para serem registradas em poucas frases. Uma introdução explica o por quê da relevância da história, eu conto a história e só. As conclusões ficam pra quem estiver lendo.

Espero que gostem.

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Mustaffa - Mais um parágrafo

Mustaffa conheceu o carnaval do Rio, de Salvador e de Fortaleza. Ele jura que sabe falar português, mas, na verdade, as únicas palavras que conhece são 'carnaval' e 'sambódromo'.

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Mustaffa

De saída da aula, sozinho, passei no Carrefour. Fui comprar baguete.

Lá, passando pelos corredores, acabei por comprar uma caixa de sabão em pó, uma extensão elétrica, 4 litros de suco e algumas guloseimas mais. Na fila, imensa, esperava minha vez. Atrás de mim vi uma menina dando lugar na fila a um senhor, que carregava apenas uma baguete. Passado um tempo, percebi este senhor comentando algo com a garota, não ouvi bem, consegui apenas distinguir a palavra “Brésil” no meio da frase.

Passei minhas compras e, enquanto estava colocando tudo nas sacolas, o senhor registrou rapidamente sua baguete, pagou e, saindo antes de mim, acenou e comentou algo como “até mais, brasileiro”, em português. Olhei pra ele, com uma expressão de interrogação, e ele repetiu “você é brasileiro, não é?”, desta vez em francês. Respondi que era, e ele disse que tinha visto a etiqueta na minha mochila, dizendo que era de Brasília. Ele disse, então, orgulhoso de todo seu conhecimento sobre o Brasil, “c’est la capital!”.

Seu nome é Mustaffa. Um francês de origem algeriana que foi 4 vezes ao Brasil e o ama. Cara de peixe, olhos esbugalhados, um pouco careca, dentes muito amarelos e encavalados. Viajou ao Brasil 4 vezes pela Renault, não sei exatamente a razão, sei que ele é, de alguma forma, mecânico. Falou que foi à fabrica da Renault de Curitiba pouco depois de ser inaugurada, talvez estivesse lá para ensinar os operadores a lidar com as máquinas francesas.

Mustaffa tem orgulho do Brasil. Mais do que isso. Tem orgulho de tudo que conheceu e viu no Brasil. Conheceu Recife, Natal, Brasília, Curitiba e o Fernando Henrique Cardoso. Diz que o Brasil é um país sem preconceito, onde o povo é muito gentil e a natureza muito bela.

Mustaffa conheceu um Shaman de um tribo brasileira que mostrou pra ele como, na tribo, eles ensinavam as crianças a plantar uma pequena árvore toda vez que fosse necessário derrubar uma grande árvore. Como um operário francês da Renault conseguiu conhecer um Shaman no Brasil, eu não sei. Mas a história ele conta.

Mustaffa, no Brasil, viu um sapo do tamanho de um abacaxi - usou exatamente esta comparação. Meteu-lhe um chute e o matou. Vendo isso, uma velhinha lhe disse que não se deve fazer isso, porque o sapo come os mosquitos, que transmitem as doenças. Contou este história como quem ficou honrado por ter tido contato direto com tão rica sabedoria popular.

Mustaffa diz que no Brasil as pessoas, sobretudo as pobres, tem muita vontade de fazer as coisas, trabalhar, ao contrário da França. A razão, diz Mustaffa, é que, apesar dos dois países terem pobreza, existe uma diferença: na França os pobres tem assistência do governo, ganham dinheiro, isso os faz perder a vontade de trabalhar.

Mustaffa diz que, apesar da origem africana, pode se passar por um brasileiro, por ter a pele mais clara. Ele, no Brasil, foi ajudado por um brasileiro a atravessar a rua, cheio de malas. O brasileiro perguntou “você é brasileiro?”. Mustaffa, prontamente, respondeu “sim!”. O brasileiro, então: “E essa bandeira da França na sua mala, gringo?!”.

E assim seguiu-se o diálogo. O algeriano falando, orgulhoso, saudoso do Brasil. A conversa se prolongou por mais de uma hora, na rua, enquanto eu segurava duas pesadas sacolas de supermercado.

Após todas essas histórias, Mustaffa despediu-se desejando-me sucesso em meus estudos. Emergiu de suas memórias em solo brasileiro, encaixou a baguete debaixo do braço e foi-se.



*Ouvindo – ‘Mike Patton & Eyving Kang – Marriage of Days’

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

O Banheiro

O banheiro do andar fica em frente ao quarto 813, logo depois da porta do elevador. Para chegar ao meu quarto – o 801 –, vindo do banheiro, deve-se passar em frente de todos os quartos, do 813 ao 802.

Nele existem quatro cabines: duas com uma privada cada e outras duas com uma ducha cada. Comecemos pelas boas qualidades. As duchas são ótimas, água quente e fria sempre funcionando, permitindo sempre o alcance da temperatura desejada. O banheiro é lavado todo dia, pelas encarregadas da limpeza, então está sempre limpo.

Pronto. Agora, às dificuldades.

Na porta de cada uma das cabines de privadas lê-se o seguinte aviso: “Por motivos de higiene pedimos que leve seu lixo para a lixeira de seu quarto”. Logo entendi o porquê; abrindo a porta da cabine percebe-se que, lá dentro, encontra-se apenas a privada. Nada de lixeira. “Motivos de higiene”?!?! Quer dizer então que tenho que pegar meu papel higiênico, usado, sair do banheiro, diplomaticamente cumprimentar meu colega com um caloroso aperto de mão e, chegando ao quarto, jogar a sujeira no meu lixo? Higiene?!?!

É claro que a regra estabelecida por nós foi: o papel desce com a descarga e o aperto de mão deixa pra depois.

Mas um outro problema não tem solução tão simples. Analisando a cabine com um pouco mais de cuidado, percebe-se a ausência do essencial: o papel higiênico. Na verdade, cada um tem o seu papel higiênico, no quarto. Assim, somos forçados a identificarmos o objetivo de nossa visita ao banheiro, levando ou não seu próprio papel consigo. É como se cada um andasse com um crachá no peito: “Número 1” ou “Número 2”. Bom, né!

Isso abre a possibilidade do desenvolvimento de novas habilidades. Formas de esconder seu papel higiênico. Se sua visita for seguida de uma ducha, é fácil; uma toalha enrolada pode esconder muito mais do que um rolinho de papel. Tranquilo!

Se você for o sortudo que mora no 813, maravilha! Uma rápida e despretensiosa olhada no corredor e, se ninguém estiver por perto, em um pulo você está dentro da cabine.

Agora, se você mora no 801... Não tem jeito. Vai ter que usar o crachá...


*Ouvindo – ‘Esperanza Spalding – Esperanza’

Mais um Personagem - Woyten

O nome dele é Woyten.

Ele é um alemão que mora no 814. É físico, toca teclado há 15 anos, gosta de Jazz e não gosta de música eletrônica. Teve o privilégio de vir pra cá de carro, então trouxe tudo com ele. No quarto ele tem um teclado, um vídeo game e frigobar.

Ele toca violão, mas não trouxe seu violão pra cá. Como todo bom alemão, muito respeitoso, achou que aqui não era permitido tocar violão, pelo bem do sono alheio. Ele passa, portanto, horas a tocar seu teclado com fones de ouvido. Mas o destino, irônico, o colocou exatamente abaixo do apartamento 914, lar de um inglês com ‘dreads’ que gosta de ouvir música eletrônica. Sem fones de ouvido.

Woyten gosta de jogar baralho. Joga um jogo que, no Brasil, chamamos de ‘Presidente’, aqui eles chamam de ‘Trou-du-Cul’, nome cuja tradução não é das mais poéticas.

Ele não fala muito bem francês. Às vezes o diálogo com ele é difícil; quando eu percebo, estou olhando pra ele, esperando que termine a frase, mas ele já parou de falar, e eu não sei o que ele quis dizer. Quando ele está perto do Micha, o já citado alemão do 805, ele fala em alemão, e o primeiro, num protesto pacífico, responde sempre em francês.

Os brasileiros o chamam de ‘Vóitchen’, e ele não gosta. Hoje o vi no corredor falando seu nome, sílaba por sílaba, os olhos arregalados, para que a brasileira repetisse corretamente. Sem sucesso.

*Ouvindo – ‘Ella Fitzgerald & Louis Armstrong’

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Alguns dos Personagens da Puvis


Da esquerda pra direita:

1 - Terê: Mexicana lutadora de Taekwondo. Tem a língua presa, ou seja, fala um francês que não é dos mais fáceis de entender.

2 - Laura: Aquela mesma, do post anterior.

3 - Thales: Um cara bonito.

4 - Thamise.

5 - Anette: Pequena, e barulhenta!

6 - Neil.

7 - Eu.

8 - ?????: Uma das mexicanas...

9 - Micha: com seu chapeuzinho de Oktoberfest do 3º milênio.



*Ouvindo - 'Renaissance - Ashes Are Burning'

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Puvis de Chavannes - A Residência

A Puvis de Chavannes é uma Torre de Babel. Gente de todos os continentes no mesmo prédio. Os mais freqüentes são árabes e africanos. Muitos marroquinos, senegaleses e tunisianos. São os seguintes os habitantes do oitavo andar que já conhecemos:


  • 801: Eu;
  • 802: Thamise;
  • 803: Thales;
  • 804: Neil;
  • 805: Micha – um alemão, de Bremen, que estuda matemática e não gosta de se relacionar com os outros alemães do prédio, pois quer treinar seu francês. Muito gente boa. Joga um jogo bizarro chamado ‘Ultimate Frisbee’. Procure no YouTube pra ver do que se trata. É como futebol americano, mas, ao invés de uma bola, eles usam um fribee. Morreu de rir quando mostrei meus cursos de alemão e seus diálogos sem nexo. Mostrei pra ele as músicas da Marlene Dietrich que tenho no meu PC, e ele disse que nunca tinha ouvido. Ele ficou surpreso de ter conhecido Marlene Dietrich por meio de um brasileiro na França;
  • 806: Pedro – um mineiro de Uberlândia.
  • 807: Um espanhol com um nome esquisito demais para a minha memória. Gente boa também, mas não entendo uma palavra do francês dele. Não faz o menor esforço pra tirar o sotaque espanhol, então converso com ele mais em inglês.
  • 809: Alma – uma mexicana muito patriota e que gosta de Pink Floyd, Janis Joplin, The Doors, entre outros. Fez a maior barulheira no dia da independência do México aqui no andar junto com a outra mexicana;
  • 810: Anette – a outra mexicana. Deve ter a metade do peso da Alma, mas faz o dobro do barulho. As mexicanas são muito barulhentas.
  • 811 ao 813: Os cariocas que chegaram ontem - Só lembro o nome de um, Pedro. Tem mais um homem e uma mulher que eu não lembro os nomes. São muito simpáticos e são também bolsistas Brafitec.
  • 815: Cindy – uma bela de uma jovem francesa, de Grenoble. Está estudando administração aqui em Lyon. Sempre encontro ela na cozinha, fazendo alguma coisa com uns vegetais estranhos. Acho que ela é vegetariana. É muito simpática, sorridente e fala devagar, dá pra entender.

Tem mais alguns habitantes do andar que ainda não conheci. Mas os mais expressivos são estes.

Fora do nosso andar tem algumas figuras interessantes também:


  • Wajdi: É o tunisiano mais ‘Robert’ do mundo. Conheci ele quando estava pegando uns documentos na recepção. Comecei a ler alguns papéis quando ele chegou do meu lado e começou a ler também. Os meus papéis! Aí tinha umas coisas que eu não sabia o que significavam, então perguntei pra ele e ele me ajudava. Ele é muçulmano, e está fazendo o Ramadan, ou seja, um mês no qual ele não bebe nem come nada enquanto o sol não se põe, o que não acontece aqui antes das 9 da noite. Isso não dá pra ele o melhor hálito do mundo. Mas ele é simpático, e ajuda bastante a gente com o francês. E a gente já ensinou umas frases bem legais em português pra ele, também. Ele conta umas mentiras engraçadas às vezes. Um dia ele nos mostrou um vídeo de Drift na internet, daí ele disse “Ah! Eu já fiz isso também, só que com uma BMW!”. Outra vez ele foi conosco comprar nosso violão, na volta ele pegou o violão uma hora e mexeu nas cordas como uma pessoa que não sabe mesmo tocar, com a mão esquerda sem tocar nas cordas. O Thales então perguntou “Que música é essa?”, e ele disse “É uma música árabe. É do nosso time de futebol.” Tudo bem, né. Não vamos contrariar.
  • Jean-Luc: Um tiozinho barrigudo que é porteiro noturno da residência. Ele adora estrangeiros, e adora conversar com a gente. É torcedor roxo do Olympique Lyonnais, que é rival do Olympique de Marseille. Tem um brasileiro no Marseille que se chama Brandão, e ele fica rindo da minha cara, “Brandaô, Brandaô!”. Sempre que vê o Neil, fala “Salut, Martin!”, colocando os polegares na testa e balançando os outros dedos. Diz que faz isso porque tinha um filme francês dos anos 40 que tinha um esqueleto de uma casa mal-assombrada que fazia isso pra assustar as crianças, e como o sobrenome do Neil é “Martins”, ele encasquetou em falar “Salut, Martin!” pra ele o tempo todo. Como ele é porteiro noturno de uma residência como esta, ele sabe falar “Boa noite” em umas 5 línguas diferentes.
  • Hamza: Um marroquino que mora aqui e também trabalha na recepção. Ele é engenheiro de informática e acho que está fazendo mestrado ou está terminando o curso de engenharia, não sei bem. Ele tem cara de brasileiro e adora jogar pingue-pongue. Um dia ele chegou pra mim e disse “Qu’est-ce que se passe avec moi?”, algo como “O que está acontecendo comigo?”. Eu, sem entender, perguntei “Como assim?”, e ele disse: “Um amigo meu chegou pra mim e me disse que os brasileiros não gostam de mim? Eu sempre fui gentil com vocês, sempre cumprimentei vocês, por que vocês não gostam de mim?”. Sem entender o que estava acontecendo eu disse que não era verdade, que a gente gostava dele sim, que ele era mesmo muito simpático sempre. Daí ele deu um sorriso, ficou feliz e ficou tudo bem. Gente estranha aqui!
  • Laura: uma francesa que acha que é chilena porque morou a vida toda no Chile. Ela fez amizade com as mexicanas, porque ela fala espanhol. Ela é fresca e tem medo do Wajdi. Não sei por que, mas ela sempre sai correndo quando o Wajdi se aproxima.

Mais personalidades aparecerão. E mais histórias com estas já apresentadas virão.



*Ouvindo: ‘The Tangent – A Place In The Queue’

A Segunda Semana – “A Chegada dos Amigos”

Até agora, desde o primeiro dia estava comigo apenas a Thamise de Brasília. O Thales e o Neil ainda não tinham chegado, por complicações com a CAPES.


Na terça-feira, depois da minha primeira noite na Puvis de Chavannes, acordei cedo para ir a uma palestra de volta às aulas na ISTIL. Fui tomar banho. Estava tomando banho quando ouço uma voz meio conhecida dentro do banheiro “André!”. Era o Thales! Ele tinha chegado no dia anterior, com as rodinhas de sua mala quebradas foi ao albergue da juventude, mas estava lotado. Então ele passou a noite em um hotel de 70 euros, e na manhã seguinte ele saiu do hotel, sem a mala, e veio para o Puvis nos procurar para ajudarmos a trazer as malas pra cá. Por sorte tinha acordado mais cedo, e ainda dava tempo de buscar a mala dele antes de irmos à palestra. Foi chato trazer uma mala de 34 kilos sem rodinha pelo metrô e tramway até aqui, mas conseguimos!


Quando fomos procurar o Monsieur Didier Leonard encontramos mais 5 brasileiros de São Paulo que tinham acabado de chegar, cheios de malas. Passamos o dia percorrendo as mesmas burocracias do dia anterior, só que, desta vez, com o Thales e os paulistas.


O Neil estava marcado para chegar neste mesmo dia, terça-feira. Mas não chegou. Quando consegui checar meus e-mails vi que ele chegaria só de noite, por um atraso do vôo. O e-mail disse que chegaria em torno das 21:00 horas e iria direto pra Puvis. Fiquei então na porta da residência esperando tinham alguns franceses também ali, esperando alguém descer. Começou a chover e nada. O segurança da residência, lá pelas 22:20, disse que eu não podia ficar ali na frente. Subi, e olhava lá embaixo de vez em quando para ver se via alguém chegando. Alguns minutos depois que cheguei ao meu quarto vi os franceses indo embora lá de baixo. No meu quarto fiquei ouvindo música e desfazendo minha mala. Por volta das 23:30 chega o Neil aqui no oitavo andar. Com uma cara de destruído! Só com uma mochila nas costas!


Depois de rir da cara dele, eu ouvi o que tinha acontecido. Ele disse que chegou lá embaixo e viu os franceses esperando alguém, ou seja, tinha chagado poucos minutos depois de eu subir. O segurança, burro, não conseguiu encontrar meu nome na lista, e não pode dizer em qual apartamento eu estava. Então ele foi de andar por andar batendo nas portas e perguntando se conhecia algum brasileiro. Até que, muito tempo depois, achou nosso quarto. E além de tudo isso, suas bagagens estavam em Lisboa.


História pra contar pros netos.



*Ouvindo: ‘Take 6 – The Standard’

A Segunda Semana – “Essa é minha casa, então...”

No primeiro dia resolvendo nossas coisas aqui na universidade já tivemos contato com a famosa burocracia francesa. Para conseguirmos nossa carteirinha na universidade era necessário um documento de seguro habitação do banco, mas para ter esse documento pediam nosso endereço, mas para conseguirmos a residência precisávamos deste mesmo documento do seguro e da carteirinha da universidade. Ou seja, o ciclo se fecha e ninguém faz nada! A burocracia é tanta que você nunca consegue fazer nada entregando todos os documentos. Alguém sempre tem que abrir uma exceção pra que você possa entregar algum documento mais tarde.


Mas, no fim do dia, tinha minha chave, meu quarto com minhas prateleiras que em pouco tempo já haviam substituído minha mala que, por sua vez, foi esquecida, guardada em cima do armário. Tomei um banho em um chuveiro de verdade, com água quente e contínua. Olhei pro meu quarto e pensei: “Essa é minha casa, então...”



*Ouvindo: ‘Take 6 – The Standard’

A Primeira Semana

Quando cheguei, a residência universitária na qual iria me instalar definitivamente, a Puvis de Chavannes, não estava aberta. Eu tinha, então, uma reserva no Albergue da Juventude de Lyon para os primeiros seis dias. Nessa primeira semana planejava abrir uma conta bancária, comprar um celular, talvez visitar a faculdade e conhecer a cidade. Imaginei, ainda no Brasil, que esta semana seria mesmo necessária para resolver algumas coisas, afinal a complicação da burocracia francesa é famosa! Não tinha idéia do quanto...

No primeiro dia andei bastante por pontos turísticos da cidade junto com o Arthur, aluno também da UnB bolsista da última Brafitec. Quando voltei pro albergue, me bateu a realidade que estava 'sozinho' na Europa, num quarto com mais 5 pessoas que eu não conhecia e que minha casa era uma mala de 30 kilos que eu mal podia abrir dentro do quarto e, quando saía, tinha que trancá-la com 3 cadeados. Isso me deu uma sensação bizarra por uns 4 ou 5 dias. Mas passou.

O saguão do albergue tinha um cheiro esquisito. Um cheiro de comida queimada, por que a cozinha era no saguão, misturado com roupa suja, porque a lavanderia era no saguão, misturado com cheiro de muita gente, porque tinha sempre gente de pelo menos 4 continentes no saguão.

A ducha do albergue!!! Meu primeiro contato com o "mito" do 'francês-não-toma-banho'. Aliás, "mito" não é a melhor expressão pra este caso. Mais tarde contarei mais. Enfim, a ducha do albergue, no meu quarto, era um cubículo com pouco mais de 1m² com uma cortininha de plástico e uma ducha. OK! Eu olhei pra ducha e pensei: "Beleza! Vou tomar banho." Apertei um botão que tinha em um cano que se conectava à ducha. A ducha me solta um jato frio e tão forte que deixava a pele vermelha, mas eu pensei: "Bom, pelo menos vem muita água, né..." Me virei comecei a molhar o cabelo e de repente a ducha pára! EXCELENTE!
O botão que eu tinha apertado era como aquelas válvulas de fechamento automático das torneiras de banheiros públicos. Para tomar um banho decente era necessário sacrificar um de meus braços de cada vez, apertando continuamente o botão. Maravilha, né! Neste ponto eu estava achando o albergue uma "beleeza"! Imagine.

Quando saí do banho encontrei dois australianos no quarto, até entao estava sozinho no quarto. Um de Sidney, seu nome era Lockland, e outro de Melbourne, se chamava Tom. Conversamos um pouco e eu fui dormir.

No outro dia acordei cedo pro café-da-manhã do albergue, achando que valeria a pena. Engano! De fato o que salvava era uma máquina de café que você podia pegar o que quisesse, mas os comestíveis eram um desastre! Tinha pão, duro, borrachudo e ruim. Tinha cereal, uns negócios de milho que ao mesmo tempo não tinham gosto e eram muito ruins. Não sei como, mas tinha um canadense que comia estes cereias com água (ÁGUA AO INVÉS DE LEITE!!) e ficava contando piadas sem graça pra quem estivesse na mesa. Uma beleza.

Como o fuso-horário não me deixava com disposição para fazer nada, de tarde fiquei na internet no saguão do albergue, que tinha rede Wi-Fi grátis. Então, de uma hora pra outra, a rede caiu. E eu não tinha mais como conversar nem mandar notícias pro Brasil. A luta pela internet continuou até de madrugada. Conheci, no mezanino do albergue algumas outras pessoas desesperadas por internet. Uma alemã chamada Lisa, um britânico, uma mexicana e uma cearense, chamada Raquel! Brasileiros estão por toda a parte aqui em Lyon. O Tom, australiano do meu quarto, costumava dizer, com cara de assustado: "Brazilians EVERYWHERE!".

Nessa noite dormi melhor, porque percebi o que tinha de legal em uma experiência como essa. Conhecer pessoas, falar em três idiomas com uma mesma pessoa, misturar os idiomas e culturas na cabeça. Isso que vale a pena.

Nos demais dias do albergue tudo correu normalmente. Todo dia fazíamos alguma coisa, os brasileiros e os australianos. Abri minha conta, com um pouco de problema com o endereço, pois eu estava morando em um albergue da juventude, mas no fim tudo fica tranquilo.

A última noite do albergue foi de dar saudade. Era domingo, então todos os supermercados normais fecharam (francês não gosta de trabalhar), só encontramos um mercado oriental pra comprar comida, então nosso jantar não foi muito típico. Equanto estávamos esperando a cozinha esvaziar, chegaram duas alemãs do nosso lado perguntando de onde éramos, depois descobrimos que ela reconheceu o português que falávamos, porque uma delas tinha morado um tempo no Brasil, em Belo Horizonte, e amava o Brasil. No fim das contas já tinhamos formado uma roda enorme com gente da Alemanha, Austrália, Escócia, Canadá, Brasil, África e Índia comendo comida oriental! Gente dos 5 continentes numa mesma roda conversando em 4 línguas diferentes.

Fantástico! O canadense, Françoois era o mais louco, mas um louco que fazia todo sentido. Ele era novo, tinha 19 anos, ou algo assim, tinha um problema de dicção bizarro, que misturava com o sotaque de canadense no seu francês, deixando ele ainda mais esquisito. Quando perguntaram "por que você está viajando por aqui?" ele disse: "Ah! Eu quero viajar pela França, conhecer cidades pequenas, trabalhar colhendo uvas em algum lugar! Quero fazer isso enquanto ainda sou novo. Quando você é velho as pessoas tem medo de você, você não consegue conhecer pessoas em um albergue como estou conhecendo agora." Achei fantástico!

Enfim, essa noite foi a despedida perfeita do albergue.

No dia seguinte acordei e vim para a universidade encontrar o Monsieur Didier Leonard, que nos encaminharia para os procedimentos para conseguirmos nossa morada definitiva. Mas iso é assunto para o próximo post.

*Ouvindo "Al Jarreau - Best Of Al Jarreau"*


Começo este Blog

Começo este blog no segundo dia da quarta semana que estou na França. E o faço com a esperança de escrever aqui algumas das coisas que aconteceram e acontecerão durente o ano que estarei aqui em Lyon.

Pra quê? Para os que estão no Brasil e querem saber as coisas que acontecem aqui e, sobretudo, para que as histórias que se formarem aqui, quando minha memória não mais as portarem, não se percam.